Alteração de Gênero
Este documento aborda a temática sob uma perspectiva da jurisprudência islâmica (fiqh). Para informações adicionais e outras abordagens sobre o tema, recomenda-se a consulta a fontes complementares.
A alteração de gênero consiste na modificação cirúrgica do sexo biológico, de masculino para feminino ou vice-versa, envolvendo a reconstrução dos órgãos genitais e de outras estruturas corporais, bem como a administração de tratamentos hormonais.
Conforme as fatawas (decretos religiosos) de alguns juristas xiitas, a alteração de gênero, por si só, é considerada lícita, desde que não acarrete prejuízos e não envolva a prática de atos ilícitos, como o toque ou o olhar proibido.
Outros juristas, entretanto, consideram a alteração de gênero em indivíduos saudáveis como ilícita, permitindo-a somente no caso de indivíduos intersexo (khonsa), particularmente os de intersexualidade complexa (khonsa-ye moshkel) — aqueles que possuem ambos os órgãos genitais, masculino e feminino, e cuja identidade de gênero não pode ser claramente determinada. O Aiatolá Sayyid Sadiq Shirazi proíbe categoricamente qualquer forma de alteração de gênero.
A alteração de gênero é uma questão emergente na jurisprudência médica islâmica. De acordo com alguns pesquisadores, o Imam Khomeini foi o primeiro jurista iraniano a emitir uma fatwa que a considerava lícita para indivíduos transexuais.
Posição no Contexto Legal e Religioso
A alteração de gênero é uma questão contemporânea na jurisprudência médica, gerando implicações significativas no direito islâmico e no direito de família[1]. Juristas e legisladores, além de examinarem a permissibilidade da alteração de gênero, também se debruçaram sobre questões diversas, como a validade do casamento após a alteração de gênero de um dos cônjuges, a tutela e custódia legal, herança, pensão alimentícia[nafaqa] e o dote (mahrieh), entre outros aspectos[2].
Historicamente, a alteração de gênero não era uma prática conhecida. Com os avanços tecnológicos e científicos na medicina, o procedimento é atualmente realizado em vários países, incluindo o Irã[3]. Por essa razão, os tratados jurisprudenciais clássicos não contêm discussões sobre "alteração de gênero". Juristas contemporâneos têm expressado suas opiniões em istiftaat[questionários e respostas jurídicas][4], em tratados sobre jurisprudência médica[5] e, ocasionalmente, em artigos específicos[6]. Adicionalmente, alguns juristas abordaram as normativas deste tema em seus cursos de jurisprudência avançada (durus-e kharej-e fiqh)[7].
Definição do Procedimento
A alteração de gênero (em árabe, tahwil-al-jens)[8] consiste na modificação dos órgãos genitais, transformando o sexo feminino em masculino ou vice-versa[9]. A alteração de masculino para feminino envolve a remoção do pênis por meio de cirurgia, a criação de uma neovagina e o aumento dos seios. A alteração de feminino para masculino compreende a remoção de órgãos como o útero, ovários e seios, e a implantação de um aparelho genital masculino. Tais intervenções cirúrgicas são realizadas em múltiplas etapas e combinadas com terapia hormonal[10].
Classificação dos Casos
A alteração de gênero é classificada em diferentes categorias com base nas características dos indivíduos:
- Alteração em indivíduos saudáveis: Pessoas que não apresentam disfunções físicas ou psicológicas relacionadas ao gênero e que desejam a alteração por razões diversas, como a busca por autoexpressão[11].
- Alteração em indivíduos intersexo (khonsa)[12]: Segundo a terminologia jurídica, khonsa refere-se a indivíduos que possuem ambos os órgãos genitais masculino e feminino. Existem duas subdivisões[13]:
- Intersexo complexo (khonsa-ye moshkel): Indivíduo cuja identidade de gênero não é clara e que carece de indicadores biológicos ou religiosos para ser categorizado como homem ou mulher[14].
- Intersexo não complexo (khonsa-ye gair-e moshkel): Indivíduo que possui indícios, ainda que conjecturais, que permitem sua classificação como homem ou mulher[15].
Alteração em indivíduos transexuais ou com disforia de gênero [Nota 1]: A transexualidade é um tipo de disforia de gênero em que a identidade de gênero do indivíduo não corresponde ao sexo atribuído no nascimento[16]. O indivíduo transexual, apesar de seu sexo biológico, identifica-se psicologicamente com o gênero oposto[17].
Contexto Histórico
A primeira cirurgia [Nota 2] de alteração de gênero no Irã teria sido realizada em 1930 (1309 no calendário persa), em um jovem de 18 anos que foi transformado em mulher[18].
De acordo com Muhammad Mahdi Kariminia (pesquisador e autor da obra Taqyir-e Jensiat - Alteração de Gênero), o Imam Khomeini foi o primeiro jurista iraniano a manifestar uma opinião sobre a norma religiosa da alteração de gênero, em seus debates jurisprudenciais de 1964 (1343 no calendário persa)[19]. Essas discussões estão contidas em uma seção intitulada "Questões Emergentes" (massael-e mostahdesse) de seu livro Tahrir al-Wassilah[20].
Afirma-se também que ele foi o primeiro jurista no Irã a emitir uma fatwa autorizando a alteração de gênero para transexuais[21]. Um indivíduo transexual chamado Fereydoun, que após a cirurgia adotou o nome Mariam Khatounpour Malekara, obteve a fatwa do Imam Khomeini que permitia a alteração de gênero após um encontro em 1985 [1364 no calendário persa], no qual descreveu sua condição médica[22]. A fatwa do Imam Khomeini, que permitia a alteração de gênero para transexuais, foi anunciada por seu gabinete no mesmo ano. A partir de então, os procedimentos de alteração de gênero passaram a ser realizados legalmente no Irã[23].
Segundo reportagem do portal Khabar Online, mais de 270 iranianos submetem-se anualmente à alteração de gênero, mediante autorização da Organização de Medicina Legal. De acordo com estatísticas oficiais, entre 2006 e 2010 [1385 a 1389 no calendário persa], mais de 1.366 pessoas obtiveram autorização para alteração de gênero no Irã, sendo que 56% desejavam tornar-se mulheres e 44% almejavam tornar-se homens[24].
Alguns analistas sugerem que as leis rigorosas contra a homossexualidade no Irã e sua criminalização são um dos fatores que impulsionam o aumento da procura por alteração de gênero, especialmente entre os transexuais[25].
Norma Jurisprudencial
Os juristas emitiram determinações para cada uma das três categorias de alteração de gênero, conforme detalhado abaixo:
Indivíduos Saudáveis
As fatawas sobre a alteração de gênero em indivíduos que não apresentam disfunções físicas ou psicológicas relacionadas ao gênero são as seguintes:
Juristas que a consideram lícita
Segundo as fatawas de juristas como o Imam Khomeini[26], Hossein Ali Montazeri[27], Muhammad Ibrahim Jannati[28], Muhammad Fazel Lankarani[29], Muhammad Assif Mohseni[30], Sayyid Ali Sistani[31], Nasser Makarem Shirazi[32], Muhammad Eshaq Fayyaz[33] e Sayyid Muhsin Kharazi[34], a alteração de gênero, por si só, é lícita, desde que não seja prejudicial e não envolva a prática de atos ilícitos como o toque ou o olhar proibido.
Argumentos para a permissibilidade
Os juristas que permitem a alteração de gênero fundamentam-se nos seguintes argumentos:
- Princípio da permissibilidade (asl-e ibaha)[35]: Conforme esta regra, toda ação cuja licitude seja ambígua deve ser considerada lícita[36]. Na ausência de uma evidência religiosa que proíba a alteração de gênero, a ação é classificada como lícita[37].
- Princípio da inocência (asl-e bara’at)[38]: Diante da incerteza sobre a licitude ou ilicitude da alteração de gênero e da ausência de uma evidência religiosa que a proíba[39], de acordo com o princípio da inocência, a conclusão é a sua permissibilidade[40].
- Regra da autoridade (qa'edah-ye taslit)[41]: Segundo esta regra, cada indivíduo possui autoridade sobre seus bens e seu próprio corpo, podendo dispor deles[42]. A alteração de gênero é uma forma de disposição do corpo e, portanto, é permitida[43].
Juristas que a consideram ilícita
Conforme a opinião de juristas como Sayyid Abul-Qassim Khoei[44], Sayyid Muhammad Reza Golpaygani[45], Mirza Javad Tabrizi[46], Muhammad Taqi Bahjat[47], Lotfollah Safi Golpaygani[48], Sayyid Ali Khamenei[49] e Sayyid Muhammad Ali Alavi Gorgani[50], a alteração de gênero para tais indivíduos não é permitida.
Argumentos para a proibição
Os juristas que se opõem à alteração de gênero fundamentam-se nos seguintes argumentos:
- Versículo da ruína (aya at-tahluka)[51]: Neste versículo, Deus proíbe que as pessoas se autodestruam, e a alteração de gênero é interpretada como um ato de desperdício das capacidades e autodestruição[52].
- Versículo da alteração da criação (aya taghyir khelghat)[53]: Neste versículo, a modificação da criação divina é considerada uma das tentações de Satanás e um ato condenável. A alteração de gênero é vista como um exemplo de modificação da criação de Deus[54].
- Com base em narrativas, a imitação de homens por mulheres e de mulheres por homens é ilícita[55]. A alteração de gênero é interpretada como uma forma de imitação do gênero oposto e, portanto, é proibida[56].
Indivíduos Intersexo (Khonsa)
Para determinar a norma para a alteração de gênero em indivíduos intersexo, alguns juristas estabelecem uma distinção entre o khonsa-ye moshkel e o khonsa-ye gair-e moshkel[57]:
Intersexo Complexo (khonsa-ye moshkel)
A maioria dos juristas xiitas[58] permite a cirurgia em indivíduos intersexo complexos somente com o objetivo de determinar seu gênero[59]. Montazeri considerou a alteração ou determinação de gênero em indivíduos intersexo complexos um caso que, em certas circunstâncias, atinge o status de necessidade[60]. Segundo Muhammad Fazel Lankarani, se um indivíduo intersexo complexo enfrentar problemas no cumprimento de suas obrigações religiosas, como a questão da mahramiyat (grau de parentesco), casamento, oração, herança, etc., e a única via para resolver o impasse for a alteração de gênero, o procedimento se torna obrigatório[61]. Ademais, conforme as fatawas desses juristas, se esta alteração de gênero, com finalidade terapêutica, atingir o nível de necessidade, a proibição de tocar e olhar o membro a ser operado é suspensa[62].
Jafar Sobhani permite a alteração de gênero somente no caso de intersexo não complexo e opina que o intersexo complexo, ao aplicar as normas de gênero, deve agir com cautela, não podendo submeter-se à alteração de gênero[63]. Sayyid Sadiq Shirazi não permite a alteração de gênero em nenhuma de suas categorias, nem mesmo no caso de intersexo complexo[64].
Intersexo Não Complexo[khonsa-ye gair-e moshkel]
Um grupo de juristas também permitiu a alteração de gênero para intersexo não complexo[65]. Alguns juristas consideram a cirurgia em casos de intersexo, seja complexo ou não complexo, como uma operação para diagnosticar o gênero, e a veem como algo fora do escopo da alteração de gênero propriamente dita[66].
Indivíduos Transexuais
De acordo com a fatwa de alguns juristas, a alteração de gênero em indivíduos transexuais não é permitida[67]. Segundo juristas como Sayyid Ruhollah Khomeini[68], Hosseinali Montazeri[69], Sayyid Ali Khamenei[70] e Sayyid Muhsin Kharazi[71], este tipo de alteração de gênero é permitido apenas se for recomendado por um médico e tiver a finalidade de tratamento, de modo que a disforia de gênero só possa ser tratada por meio da alteração.
Implicações Legais e Doutrinárias
Após a cirurgia de alteração de gênero, surgem novas normativas, dentre as quais se destacam:
Anulação do casamento
Segundo as fatawas dos juristas xiitas, no momento em que um dos cônjuges[marido ou mulher] realiza a alteração de gênero, o contrato matrimonial é anulado[72]. Se ambos os cônjuges alterarem o gênero simultaneamente, de modo que o homem se torne mulher e a mulher se torne homem, de acordo com a fatwa de Sayyid Ruhollah Khomeini, é possível que o contrato de casamento se mantenha válido; embora seja uma precaução recomendável (ehtiyat-e mostahab) a realização de um novo contrato[73]. Segundo a fatwa de Muhammad Fazel Lankarani, o casamento é imediatamente anulado, e eles podem realizar um novo contrato, sendo uma precaução recomendável que aguardem até o término do período de espera (edda)[74].
Dote[Mahrieh]
Segundo alguns juristas, com a anulação do casamento, se a relação sexual ocorreu antes da alteração de gênero, o homem deve pagar o dote integralmente[75]. No caso de não ter havido relação sexual, de acordo com Sayyid Ruhollah Khomeini, com base nas regras, o pagamento do dote integral parece ser a medida correta[76]. Hosseinali Montazeri opina que a precaução recomendável é que se chegue a um acordo entre as partes[77].
De acordo com a fatwa de Fazel Lankarani, se a alteração de gênero for realizada pela mulher e com a permissão do marido, no caso de não ter havido relação sexual antes da alteração, o dote da mulher deve ser pago integralmente; embora a precaução recomendável seja um acordo entre as partes[78].
Tutela Paterna
Se um homem que detém a tutela se tornar mulher por meio da alteração de gênero, de acordo com a fatwa de alguns juristas, sua tutela sobre os filhos menores é suspensa. No caso de uma mulher se tornar homem, ela não adquire a tutela sobre os filhos menores, a qual é transferida para o avô paterno ou, na sua ausência, para o governante[79].
Herança
De acordo com os juristas, o critério para a herança é a identidade de gênero (masculina ou feminina) no momento do falecimento do herdeiro[80]. Com base nisso, se uma pessoa do sexo masculino realizar a alteração de gênero antes do falecimento do herdeiro, herdará como mulher. Se uma pessoa do sexo feminino realizar a alteração de gênero antes do falecimento do herdeiro, herdará como homem[81].
Obras de Referência
Algumas das obras que abordam a alteração de gênero sob uma perspectiva jurisprudencial incluem:
Livro Taqyir-e Jensiat[Alteração de Gênero], de autoria de Muhammad Mahdi Kariminia: Nesta obra, o autor, além de analisar as categorias de alteração de gênero, compila algumas das istiftaat[respostas a questionários jurídicos] sobre o tema e suas normas relacionadas, e analisa as opiniões dos juristas. O livro, de 497 páginas, foi publicado pelo Centro Jurisprudencial dos Imames Puros[a.s.], em 2010[1389 no calendário persa], em Qom[82].
Livro Taqyir-e Jensiat, Aari ya Nah?[Alteração de Gênero, Sim ou Não?], resultado das sessões de jurisprudência avançada[dars-e kharej] de Yadollah Douzdouzani, um dos marjas[autoridades religiosas] de imitação xiitas: O conteúdo deste livro é resultado dos ensinamentos de Douzdouzani no âmbito do debate sobre "tazeen-ur-rajul bima yakhtassu bin-nisaa wa bil-'aks"[A ornamentação do homem com aquilo que é específico das mulheres e vice-versa][83]. A obra foi compilada por Muhsin Dalir e publicada, com adições, em 152 páginas, em 2008[1387 no calendário persa][84].