Incredulidade
A Incredulidade ou Kufr, (em árabe:الكُفر) em contraposição ao Islã, é definida como a negação de Deus, de Sua unicidade, da missão profética de Muhammad (s.a.a.s.) ou de qualquer um dos princípios essenciais da religião. Aquele que nega qualquer um desses fundamentos é considerado descrente (Kafir). No âmbito da jurisprudência islâmica, são estabelecidas normas específicas relacionadas aos descrentes. Entre elas, destacam-se a impureza legal de seu corpo e a proibição do matrimônio entre um muçulmano e um não muçulmano.
De acordo com os veredictos (fatwas) dos juristas xiitas, não é admissível declarar infiel alguém que pertença à comunidade do Povo de Qibla. Este termo refere-se aos adeptos de outras escolas islâmicas que não negam os princípios essenciais da fé. Por essa razão, correntes como os Carijitas, os Nassibis e os Gulát, por negarem tais princípios, são, na perspectiva dos juristas xiitas, considerados descrentes.
Em algumas tradições transmitidas pelos Imames xiitas, praticantes de certos pecados, como suborno, ostentação ou o abandono da oração, são classificados como descrentes. Compreende-se, contudo, que o tipo de incredulidade mencionado nessas tradições é de natureza prática, e refere-se à desobediência aos mandamentos divinos. Segundo os juristas, o praticante de tais atos não está sujeito às normas legais aplicáveis aos descrentes, como a impureza ritual ou a proibição de casamento com muçulmanos.
O conceito e a classificação da incredulidade
A palavra "Kufr" e suas diversas derivações ocorrem mais de quinhentas vezes no Alcorão[1], com significados variados, tais como: negação de Deus, da profecia, da ressurreição, ingratidão pelas bênçãos divinas, crença na Trindade, atribuição de divindade ao ser humano, apostasia, idolatria e rejeição aos mandamentos divinos[2].
Nos textos narrativos, diversas tradições abordam o conceito de incredulidade. Por exemplo, Kulaini, na obra Kafi, dedica seções específicas sob os títulos "بابُ وجوهِ الْکفر" (Os Aspectos da Incredulidade) e "بابُ دَعائِمِ الْکفر و شُعَبِه" (Os Fundamentos e Ramos da Incredulidade), nos quais reuniu diversos relatos sobre as suas categorias[3]. Já Ḥurr al-‘Amili, em Wassa’il al-Shi‘a, dedicou um capítulo ao tema da "prova da incredulidade e apostasia mediante a negação de certos princípios essenciais da religião" e reuniu nela narrativas a esse respeito.[4].
A discussão sobre os limites, categorias, condições e implicações jurídicas da incredulidade está presente em disciplinas como exegese (tafsir), teologia e jurisprudência.[5]
Definição e categorias do Kafir
A incredulidade consiste na rejeição de Deus, de Sua unicidade, da missão profética do profeta Muhammad (s.a.a.s.), do Dia do Juízo, ou, de modo geral, de qualquer um dos princípios fundamentais da religião[6]. Segundo outra definição, é a negação daquilo cuja aceitação e confissão são obrigatórias[7]. Assim, o indivíduo que rejeita qualquer um desses elementos é considerado descrente[8]. Etimologicamente, o termo "Kufr" deriva da raiz que significa "encobrir" ou "esconder"[9]; por isso, aquele que oculta os sinais evidentes da existência e unicidade de Deus é designado Kafir[10].
Tipos de infiéis
Artigo principal: Kafir
Na jurisprudência islâmica, os Kafirs são classificados em diversas categorias, tais como:
Kafir original (não-muçulmano de origem)[11]; Apóstata (murtadd)[12]; Povo do Livro (ahl al-kitab)[13]; Kafir sob proteção do Estado Islâmico (Dhimmi)[14]; Kafir em guerra contra os muçulmanos (ḥarbí)[15]. Cada categoria está sujeita a normas gerais, bem como a disposições jurídicas específicas, entre as quais:
- O Kafir é considerado ritualmente impuro[16]; embora haja divergência, sendo que alguns juristas não consideram os ahl al-kitab impuros[17].
- É vedado à mulher muçulmana casar-se com homem não muçulmano, e, de modo geral, é proibido ao homem muçulmano contrair matrimônio com mulher não muçulmana[18]; contudo, alguns juristas permitem o casamento temporário com mulheres dos Povos do Livro[19].
- É proibido o consumo da carne de animais abatidos por Kafir[20].
Incredulidade prática
A incredulidade prática refere-se à desobediência às ordens divinas, contrapondo-se à obediência[21]. Diversos relatos declaram Kafir os que abandonam deliberadamente a oração ou a peregrinação, ou os que praticam o suborno ou a ostentação[22]. Compreende-se que esse tipo de Kufr não equivale à incredulidade que exclui o indivíduo do Islã[23], mas representa uma grave violação dos deveres religiosos.
Alguns juristas xiitas também consideram que os sunitas incorrem em uma forma de incredulidade doutrinal por negarem a autoridade do Imam Ali ibn Abi Talb (a.s.) e sua sucessão legítima após o Profeta Muhammad (s.a.a.s.). No entanto, sob o ponto de vista jurídico, os sunitas são considerados muçulmanos, gozando de todos os direitos, como a pureza ritual, a inviolabilidade da vida e dos bens, e a licitude do casamento com eles[24].
Negação dos princípios essenciais da religião
Artigo principal: Princípios essenciais da religião
Há consenso entre os juristas islâmicos de que a negação de um princípio essencial da religião resulta na incredulidade[25]. Os princípios essenciais da religião são verdades religiosas claras, incontestáveis e reconhecidas universalmente entre os muçulmanos[26].
Segundo os juristas, a negação de princípios pertencentes à prática religiosa só leva ao Kufr se implicar, direta ou indiretamente, na negação da missão do Profeta Muhammad (s.a.a.s.)[27]. Alguns, porém, defendem que mesmo sem envolver tal negação, o simples ato de rejeitá-los já configura, por si só, um tipo de Incredulidade[28].
Seitas islâmicas consideradas Kafir
Segundo os juristas imamita, alguns grupos islâmicos como os Carijitas, Nassibis, Gulát, Mujassimah (que atribuem corporeidade a Deus), Mushabbihah (que comparam Deus às criaturas materiais) e Mujabbirah (deterministas)[Nota 1] são considerados descrente, uma vez que negam princípios essenciais da fé[29].
De acordo com o autor de Al-Ḥada’iq al-Naḍirah, há unanimidade entre os juristas xiitas quanto à impureza dos Carijitas, Nassibis e Gulát[30]; mas há divergências quanto à impureza das demais seitas[31]. Sayyid Muḥammad Kaẓim Ṭabaṭaba’i Yazdi, em Al-‘Urwat al-Wusqa, sustenta que os Mujassimah, Mujabbirah e os sufis adeptos da waḥdat al-wujud, caso observem os preceitos islâmicos, não devem ser considerados impuros[32].
Os estudiosos xiitas reconhecem como muçulmanos os seguidores de outras escolas, inclusive os sunitas, desde que professem os dois testemunhos e não manifestem hostilidade contra a Ahl al-Bait (a.s.)[33].
Tacfir do Povo de Qibla
Artigo principal: Takfir do Povo de Qibla
Takfir refere-se ao ato de declarar um muçulmano como infiel[34] ou atribuir incredulidade ao Povo de Qibla[35]. Os juristas xiitas afirmam que os seguidores das demais escolas islâmicas que professam os dois testemunhos e não negam nenhum dos fundamentos da fé, como o monoteísmo, a missão profética e a ressurreição, são muçulmanos, e não é admissível declará-los descrente[36]. Juristas como Ibn Idris al-Ḥilli e Shahid al-Sani afirmam que é inadmissível acusar de Incredulidade alguém que manifesta fé exteriormente, e que o acusador deve ser punido com medidas disciplinares (ta‘zir)[37].
Abd al-Raḥman al-Jaziri (m. 1360 AH), jurista sunita egípcio, escreveu em Al-Fiqh ala al-Mazahib al-Arba‘a que, de acordo com os juristas hanafitas, shafi‘itas e hanbalitas, declarar um muçulmano infiel é proibido, e quem o fizer deve ser punido[38]. A Enciclopédia Jurídica do Kuwait atribui aos Shafi‘itas a opinião de que quem faz takfir de um muçulmano incorre ele próprio em Kufr, pois ao fazê-lo estaria identificando o Islã com a incredulidade[39]. Apesar disso, nos séculos XIV e XV da Hégira, grupos wahabitas e salafistas têm praticado o takfir contra diversas correntes muçulmanas, especialmente os xiitas, devido a crenças como a intercessão, tawassul (a mediação) e a visita a túmulos dos piedosos[40].
Referências
Notas
- ↑ Era um grupo teológico islâmico baseado na crença de que os seres humanos são controlados pela predestinação, sem escolha ou livre arbítrio, e que todas as ações são compelidas por Deus. Shahrastānī. al-Milal wa al-Niḥal. 1364 Sh, vol. 1, pàg. 97.
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